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A Construção da Alma da Cidade

A Construção da Alma da Cidade

“A alma de uma cidade é exatamente o seu mistério. A força que faz com que ela cresça em uma direção e não em outra. É a alma da cidade que está presente na hora das nossas escolhas coletivas, e é também ela que atrai os de fora para que escolham este chão como terra prometida.” (Ana Cláudia S. Saldanha no seu ensaio “A Alma da Cidade”)

Eu entendo que a alma de uma cidade é formada pela recordação coletiva, que pode ser de algo físico, material, que pode ser, por exemplo, a velha igreja de Nossa Senhora da Piedade, ou os cinemas Vitória e Imperial; pode ser algo intangível como os antigos desfiles cívicos setembrinos, ou os eventos carnavalescos com a participação de escolas de samba e blocos; muitos se lembram das saudosas tardes de futebol no campo do Paraense. Ou das missas celebradas aos domingos às cinco horas da manhã. Ou do “footing” na Rua Direita. Pode ser uma lembrança com sabor de picolé do sô João Miranda ou do sorvete do Bar do Ary. Lembrar-se de pessoas é mais comum do que pensamos: a minha geração por exemplo jamais se esquecerá dos elegantes irmãos Faria, atendendo a clientela na loja da família: Antônio, José, Jacy, Paulo e Pedro, sempre impecavelmente trajados com calças e camisas sociais; sapatos de couro, luzindo. Todos bem escanhoados e a gentileza no trato? Inolvidável. Para quem em 2021 entra numa loja e é chamado de “tio” pelo balconista (que nunca viu) calçando tênis, usando calças jeans rasgadas na perna, às vezes portando camiseta sem manga, e com a barba por fazer. -Querendo alguma coisa tio? pergunta o ser inominado; a vontade é responder à altura, pois pessoas que foram atendidas pelos Irmãos Faria, ou pelo Levy Altivo, ou pelo Walter Marinho, pelos Irmãos Mendes (os meninos do Tide (Erotides) Mendes: Raimundo, Rubens, Totonho e José Maria; pela Dica da “A Futurista”, ou pelas irmãs Heráclita e Filhinha Mendonça nas Lojas Avenida; é um horror o tratamento de choque dado pelo balconista que nasceu na primeira década deste século. Cruz Credo!

As pessoas de minha geração e os remanescentes das anteriores sentem uma espécie de banzo quando o assunto é “pessoas folclóricas”. Choram quando se lembram da Picututa da Tabatinga; do José Lino do violino e de sua irmã Ana, ambos da região do Segredo; também de lá o Pedrinho da Vila e seu irmão Capuca; dos irmãos hortelãos Oré e Orão com seus balaios cheios de verduras cultivadas na horta à beira da ferrovia; não há como sentir saudade da banda de música sem se lembrar do seu principal figurante Zé da Vargem, com sua inocência de protegido por Jesus, abrindo alas para que a euterpe (epa!!!) passasse. E os irmãos Maiado e Maiadinho? O mais velho, Maiado, às vezes contava: -Jesus apareceu para o Padre Libério e mandou ele tomar conta de ‘nóis’. Simples assim. Dormiam sob as marquises, comiam o que lhes era oferecido; mas diariamente passavam pela Rua Maestro Espíndola onde morava o santo do centro-oeste de Minas, para a tomar-lhe a benção e ouvirem a advertência de praxe. Não são muitas pessoas mais, mas ainda existe quem se lembre do carroceiro sô Geraldo “mancebado” ou ensebado, pois nunca se preocupou com a própria higiene. Mal humorado e turrão, também bebia muito; e falava palavrões. O burrinho que puxava a sua carroça tinha o nome “Relógio”, a molecada então se esbaldava perguntando: sô Geraldo são quantas horas? E o irascível carroceiro respondia: – vai perguntar a sua mãe seu FDP ou então dava a resposta esperada: levanta o rabo do burro (o Relógio) e olha… Como não se lembrar do Aguimar, o GUI, um negro fortíssimo, que viveu algum tempo no Rio de Janeiro, voltando de lá, declarou-se estivador e nesta condição empregou-se no armazém dos Irmãos Abreu, onde trabalhou por muitos anos. Não gostava de ser chamado de “chapa” e respondia com sua voz forte e grave: – chapa são os outros, eu sou estivador, trabalhei no porto do Rio de Janeiro, na Praça Mauá. Aguimar fumava cachimbo e podia ser visto muitas debruçado na mureta da Ponte Grande, apreciando as águas do ainda caudaloso e límpido Ribeirão Paciência e tirando baforadas de seu cachimbo. Numa dessas ocasiões, passando um conhecido pela ponte e notando o quão absorto estava o Aguimar, fez-lhe uma advertência: não cochila não Aguimar, senão seu cachimbo cai. Distraído, o sempre educado Aguimar respondeu ao transeunte: é baixo!!! Neste momento, o cachimbo que estava seguro pela boca, caiu. Fez tibuuum na água e foi levado pela correnteza. Como não se lembrar do sô Antonio encerador, que cuidava de encerar as casas das famílias mais tradicionais? Ele também vivia na região do Segredo e jamais saia às ruas sem estar usando paletó. E ia ao cinema todos os dias: uma noite no Vitória na outra no Imperial. E o senhor Américo Ferreira? Sempre bem vestido, bonitão e falante, de família nobre da cidade; saía pela Rua Direita e cumprimentava as pessoas com o mantra: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”. Dá para esquecer do sô Américo? Não dá. Nem do Tião do Cinema, um despojado, diante da lordeza do concorrente Tadinho Mendonça, sempre de calças e camisas sociais e fazendo uso de piteiras ao fumar. Cada um ao seu estilo, inesquecíveis.

A alma de uma cidade é construída assim, por centenas, milhares de lembranças, que são centelhas formadoras dessa alma, lembranças que também pode ser sonora quando ouvimos o rondante da fábrica batendo as horas da madrugada com uma barra de ferro, num triângulo que ficava na Rua Oito de Maio, ao lado da portaria. O povo comentava que o coronel Torquato dono das fábricas e morava ali perto, costumava ficar acordado de ouvidos atentos conferindo as batidas do seu empregado. Ou então o locutor do parque de diversões de passagem pela cidade anunciando: – o rapaz de camisa vermelha oferece a próxima música à mocinha de tranças e blusa azul que está na fila da roda gigante! Ou então a voz grave e roufenha do locutor Zico Melo Franco passando de carro anunciando pelos seu serviço de som móvel, a sensacional tarde esportiva do domingo próximo no “majestoso estádio Ovídio de Abreu”. Alguém aí se lembra do som das campainhas acionadas no altar da igreja matriz avisando que era o momento exato da “benção do Santíssimo”? E quem se lembra de como o povo parava o footing e se voltava para onde estava a igreja para receber a benção?

A alma de uma cidade pode levar dezenas de anos, séculos até, para se consolidar, depurar, aprimorar aquilo que passa pelo subconsciente das pessoas que formam essa ou aquela comunidade. Quais pessoas, coisas e animais merecem continuar registradas, sejam os burricos Relógio ou o Periquito do inolvidável Vasco Padeiro; a casa (castelinho) do doutor Álvaro de Abreu ou casarão preservado da Chácara Orsini; os hortelãos Orão e Oré ou o encerador sô Antônio; Padre Grevy e Padre Libério tão diferentes mas com a mesma Fé inquebrantável na Igreja que serviram por toda a vida: católica, apostólica e romana. Nesta terceira década do Século XXI eu ouso dizer que a alma de Pará de Minas está em fase de evolução e não está mais em todas as partes da cidade, pelo menos de maneira absoluta. Acredito que ela esteja muito mais no bairro Nossa Senhora da Graças do que em qualquer outra comunidade urbana; a presença da alma antiga do Pará também está fortemente presente na Várzea, ou na Tabatinga, ou na Vila Sinhô. Com toda a certeza ela está no Alto (bairro Nossa Senhora de Lourdes) no entorno da praça da Gruta e da Rua do Segredo. A nossa alma coletiva está na Praça Rio Branco e na sua vizinha Praça da Independência; nas ruas Guimarães Sobrinho e São Pedro. Posso jurar que centelhas formadoras da alma de Pará de Minas estão espalhadas aqui e ali, no Grão Pará ou no Eldorado; no Residencial Cecília Meireles ou no bairro Serra Verde; na Matinha ou em Gorduras, que outro dia mesmo eram comunidades rurais, mas agora são bairros do perímetro urbano, como Santos Dumont ou Belvedere. Onde estiver um paraense de Minas com mais de sessenta anos, que se lembre de tudo que foi escrito até aqui, esta pessoa é uma centelha que ajuda a formar a nossa grande alma coletiva. O nosso velho centro da cidade está cada vez mais carente da alma da cidade. Antes as pessoas iam à loja do sô Domingos Amaral, ou do Chiquinho Mendonça, ou do José Inácio e do seu filho Walter Marinho; comprava móveis na mobiliadora do Joaquim Vieira e eletrodomésticos na loja do João Bosco Mendonça. Agora não mais. As lojas costumam ser propriedade de sociedades anônimas, sediadas em outras cidades. Seja qual for o ramo, material de construção por exemplo se comprava no “Zé do Zico”, do Zico eu não me lembro, mas o Zé mencionado, José Ferreira de Abreu, era uma espécie de unanimidade municipal, todo mundo gostava dele, e olha que “todo mundo” é muita gente. Galante e galã, bem humorado, boa praça, foi um dos melhores goleiros do nosso futebol, casou-se com uma Grassi – Mariângela e com ela formou linda família. Só depois que ele se aposentou que o ramo de material de construção na cidade se agitou, com abertura de novos estabelecimentos. Antes ninguém se atreveu a concorrer com o ícone Zé do Zico, verdadeiro obelisco. E tome Eletrozema, Casas Bahia, Ricardoeletro e em vez de curarmos nossas enxaquecas com mezinhas das farmácias do sô Raimundinho, ou do sô Júlio Leitão ou do Eudes, o remédio agora é pedir socorro numa dessas “drogaseiládasquantas”. Bem assim.

A partir do ano 1979 e por toda a década de 1980 um movimento de migração interna, um autêntico êxodo, verificou-se rumo a Pará de Minas, anunciada pelos quatro cantos do estado de Minas Gerais, como a nova Canaã. Primeiro vieram famílias inteiras de cidades vizinhas: Pequi, Maravilhas, Papagaios, Pompéu, Pitangui e sua Onça; Dores do Indaiá, Martinho Campos, Abaeté, Araújos, Perdigão e Moema. A noticia logo se espalhou no melhor estilo boca-a-boca pelos vales do Rio Doce, Jequitinhonha, Mucuri, Verde Grande e o pequeno também, pelo São Francisco abaixo, pelo Paracatu e pelo Urucuia. Mas que noticia foi esta que atraiu para cá essas centenas, milhares de famílias? A de que no Pará de Minas havia trabalho e moradia sobrando. O que era apenas uma meia-verdade. O fato é que Pará de Minas saltou de 31 mil habitantes em 1970, para 44 mil em 1980, quando foram contados os recém chegados, sendo que no censo de 1991 a população bateu em 61 mil habitantes, o dobro do censo de 1970. Nunca em sua história o crescimento demográfico de Pará de Minas tinha sido tão grande, muito acima das médias estadual e nacional. Essas milhares de pessoas e os filhos delas, e os filhos dos filhos, todos já perfeitamente assimilados com o jeito de ser paraense de Minas, no entanto não fazem parte da velha alma da cidade, que nunca a mais será a mesma. Um novo caldo cultural está sendo preparado num efervescente e metafórico caldeirão cuja mistura quando ficar pronta, daqui a quarenta ou cinquenta anos, será servida como a alma da cidade em sua nova versão. Entre 1846 quando foi criada a paróquia de Nossa Senhora da Piedade do Patafufo até 1979, ano do início do grande êxodo, se passaram 133 anos. A nova alma da cidade está agora em 2021, com apenas quarenta e dois anos, é uma alma menina, novinha em folha, ainda em formação. Enquanto ela não se solidifica segue valendo a velha alma que herdamos (a minha geração) dos nossos pais e avós que nada tem a ver com o que já veio nos últimos anos ou com o que está para chegar. Sinceramente, no fundo do meu coração, espero que todas as centelhas que estão se acrisolando nesta alma novíssima, sejam fagulhas de coisas boas e que contribuam para que o nosso jeito de ser não acabe jamais. (LUIZ VIANA DAVID)

Luiz David

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