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AS SANDÁLIAS DE MITUCA

As sandálias de Mituca

(Luiz Viana David)   

Foi um escândalo municipal quando o grupo de jogadores de futebol, que a diretoria do Paraense trouxe, principalmente do Rio de Janeiro, saiu pelas ruas de Pará de Minas trajando bermudas e camisas coloridas. Uns dois ou três mais contidos, vestiam roupas,  digamos assim, corriqueiras, mas um componente da indumentária era comum a todos: as sandálias de borracha, tipo japonesas, que começavam a se popularizar e ficariam famosas com o nome  “havaianas” e nunca mais sairiam da moda,  mas em 1961 ainda eram quase  desconhecidas na cidade.

Se quando escrevo esta crônica, em 2013, houvesse um desfile de homens nus pelas ruas da cidade, o impacto talvez fosse menor.  Eram uns quinze, a maioria negros, a ginga no caminhar e a linguagem cheia de gírias chamavam a atenção.

 

Até aquele dia homem nenhum da cidade jamais havia mostrado suas pernas publicamente, a não ser na piscina ou na quadra de basquete/volei do Pará de Minas Tênis Clube e nos campos de futebol. Assim despudoradamente, nunca. Se algum patafufense tinha sandálias como aquelas, ou bermudões, ou camisas espalhafatosas, devia  usá-las apenas no mais recôndito de seu lar, ou quando arriscava uma viagem ao Rio de Janeiro.

Á medida que o grupo passava, aumentavam os comentários preconceituosos: as mulheres mais conservadoras,  demonstrando –ou fingindo,   grande indignação,  achavam aquilo uma indecência, uma ofensa á tradicional família paraense, que haveria de merecer um enérgico sermão do vigário padre Hugo na próxima missa. “Onde já se viu”, diziam, “um bando de  marmanjos passeando quase pelados pelo centro da cidade” – e “calçando sandálias, coisa de  macho-fêmea, de frescos, de mariquinhas”, completavam outras, que ignoravam  adjetivos que ainda não eram populares por aqui, tais como viado, boiola, bicha e chibungo.  Se conhecessem,  certamente teriam despejado todo o repertório de ofensas sobre a boleirada.

 

Os patafufenses até que usavam um tipo de  calçados parecido com as tais havaianas,  que  chamavam de chinelas, ou precatas,  corruptela de alpercatas, mas eram daquelas bem rústicas,  feitas de sola de pneu com tiras de couro cru, que julgavam mais condizentes com sua masculinidade. Um e outro arriscavam calçar sandálias idênticas às usadas pelos frades holandeses do ginásio São Francisco.

 

O grupo de boleiros seguiu pela rua Direita, logo atrás vários garotos formavam um séquito. Um deles, tal qual uma enciclopédia de futebol, ia informando: -aquele fortão, meio careca, de calças brancas, é o Mituca, fez ala com Zizinho no ataque do Bangu, mas já jogou também no Vasco da Gama e em Portugal. O baixinho mais novo é o Fábio, veio do Cruzeiro. Aquele outro é o Manoelito que já jogou num monte de times do Rio e de São Paulo mas é de Montes Claros,  o mais baixo é o Bastinhos, também veio do Bangu; aquele mulato alto é o Ocário, jogou no Pedro Leopoldo, mas foi campeão mineiro juvenil pelo América.

 

E vai o cortejo, jogadores na frente, a molecada  atrás,  e nas portas dos bares e lojas os homens faziam seus comentários de bons entendedores que eles se achavam. A maioria  era favorável a iniciativa do glorioso Paraense Esporte Clube de se profissionalizar, para disputar o campeonato mineiro da segunda divisão, primeiro passo para se chegar onde já estavam os grandes times da capital e  das principais cidades do estado. Mas havia muita gente contra. Para esses, era um absurdo, um desperdício de dinheiro, o Paraense buscar lá fora um monte de jogadores, quando dezenas de craques sobravam por aqui. Tudo bem que o dinheiro era do Zé do Zico, do Hugo Marinho, do Alano Melgaço,  do Zé Edgar, do Zé Porfirio e de outros dirigentes, além da contribuição mensal dos quase mil sócios  do clube;   mas pagar alguém para jogar bola era coisa que não entrava na cabeça de muitos.  “A arroba de toucinho custando os olhos da cara e o Paraense  vai pagar esses vagabundos para jogar bola”, esbravejou o jovem Ronaldo de Castro Alves, o Nadinho, dono de um boteco na esquina de rua Tiradentes com o Largo do Rosário, e futuro vereador, começando a revelar seus dons de polemista.

 

Muitos dos craques locais do Paraense também fecharam a cara e fizeram beicinho para os forasteiros: -quando era para jogar de graça fomos nós, os bobocas do Pará, agora que vai ter salário e carteira assinada,  buscam esses filas-bóias no Rio de Janeiro, reclamavam os mais exaltados, posando de vítimas.

 

Na verdade, poucos desconfiavam, mas naquele momento começava a sair de cena o melhor time de futebol já formado na região em todos os tempos, o glorioso Paraense de Edgar (ou Ricardo Binder), Barrão e Hélio; Luiz da Ica, Wilsinho e Zé da Uca – Rivalino, Coteco, Paulinho, Nilton e Geraldo Casinha, mais outro tanto de coadjuvantes da mesma categoria.

 

O cortejo seguiu pela rua Direita, desceu a rua do Rosário, passou pela Expedicionário, praça da Estação, rua São José, praça da prefeitura, de volta à casa que ia servir de concentração do time, localizada na Tenente Coronel Roberto, quase esquina de rua do Sabuco, hoje Major Fidélis. Para usar uma linguagem futebolística, o passeio foi como se a rapaziada estivesse fazendo o reconhecimento do gramado antes de uma partida, findo o qual,  os jogadores entraram em casa e foram se preparar para o almoço, deixando lá fora a gurizada cheia de entusiasmo.

 

Era 1961 e a década que haveria de mudar Pará de Minas e o mundo dava seus primeiros sinais de vida.

 

Ás três e meia da tarde daquele mesmo dia, o estádio “Ovídio de Abreu” estava lotado como se fosse uma tarde de domingo, parecia que a cidade toda estava lá para ver o primeiro treinamento coletivo da equipe. Nas cadeiras cativas, entre dezenas de outros, estavam o padre Grevy Guimarães, o alfaiate Raul Bechtlufft, o comerciante João Remo, o professor e advogado Wilson Guimarães,  deputado estadual e ex-jogador do Paraense. E ainda Ary Coutinho, dono do bar mais famoso da cidade, localizado na esquinas das ruas Direita com Antônio Novato, local tido como o quartel general dos esportes,  onde se discutia tudo, principalmente política, religião e futebol, não necessariamente nesta ordem. O Sô João da “Pensão São João” (estritamente familiar), torcedor tão fanático que assistia até a lavadeira cuidar dos uniformes, de vez em quando soltava o seu famoso grito de guerra, com aquele vozeirão que Deus lhe deu: “vai que é mooole!!!”. Noutro grupo estavam os diretores do clube: Zé do Zico, Hugo, Alano, o presidente clube Zé Porfirio, dr. Heleno Leitão, todos ouvindo com atenção o que era dito por  Zé Edgar,  misto de jogador e diretor, responsável pela indicação dos jogadores contratados, pois conhecia todos eles de suas andanças por Belo Horizonte, São Paulo e Rio, onde defendeu América, Atlético, Palmeiras e Botafogo, numa carreira meteórica que o levou até à seleção brasileira que disputou a Copa América, no Peru, em 1957. Por muito pouco  Edgar não esteve no elenco campeão do mundo na Suécia,  mas foi um dos craques que ficaram no país, de sobreaviso, afinal,  a Seleção podia levar apenas dois goleiros e esses eram Gilmar e Castilho. Edgar  era jovem e podia esperar,  mas três anos depois, no auge da carreira, resolveu parar e se tornar dirigente, um “paredro”  como se dizia então.

 

As arquibancadas estavam cheias. Dezenas de operários das fábricas de tecidos, que haviam deixado o batente às 3 da tarde, chisparam para o campo. Era notável,  também a presença do pessoal que trabalhava no comércio: caixeiros e balconistas, todos arranjaram uma desculpa qualquer para escapar da vigilância dos patrões, para dar nem que fosse uma espiadinha só.

Como os bancos fechavam ás 3 da tarde, antes das quatro a maioria dos bancários já estava no campo. Até as meninas da zona boêmia, bastante maquiadas, compareceram,  entre elas a loiríssima Constancia, que fazia o estilo Marylin Monroe, símbolo sexual daqueles anos.  Lideradas pela veterana Bilica, que de vez em quando ralhava com as mais espevitadas,  ficaram nas gerais, no lado oposto das arquibancadas cobertas, tomando o maior solão, que fazia escorrer  a maquiagem excessiva.  Em pouco tempo, muitos dos craques estariam de caso com algumas delas, praticamente morando na zona.

 

Garotos de todas as idades, sem o que fazer no dia a dia,  predominavam . Todos ansiosos, queriam ver em  ação os craques que Zé Edgar trouxera do Rio, então uma cidade maravilhosa, que no seu  imaginário inocente era sinônimo de paraíso. Era o lugar onde moravam e jogavam, “davam olé”, como se dizia, Garrincha, Nilton Santos, Quarentinha, Didi, Zagalo, Leônidas, Pompéia, Romeiro, Joel, Henrique, Dida, Moacir, Babá, Telê, Escurinho, Valdo, Sabará, Almir, Belini, Delém, Décio Esteves. Todos eles, verdadeiros mitos, cujas proezas chegavam pelas ondas do rádio através das dramáticas transmissões de Jorge Cury, Waldir Amaral e Oduvaldo Cozzy, com comentários de João Saldanha, Ruy Porto e Luiz Pimentel.

 

Quando o ex-jogador e técnico  Moacir Rodrigues,  trilou seu apito, dando inicio ao primeiro treinamento coletivo do Paraense na era profissional, todos os corações bateram mais forte. Na hora ninguém sabia, mas estava sendo dada a saída para uma verdadeira revolução nos costumes do povo de Pará de Minas.

 

Naquelas tardes do estádio do PEC, assistindo aos treinos ou torcendo durante os jogos, foi forjada a mais radical mudança no jeito de ser de nossa gente.

Primeiro vieram os cariocas, depois foi a vez de  quase um time inteiro ser contratado em Montes Claros, afora os incontáveis jogadores avulsos que chegavam de todas as regiões do Brasil. Cada um que vinha trazia um sotaque diferente, um hábito peculiar, uma novidade qualquer, uma roupa mais ou menos colorida, só quem viveu aqueles momentos sabe como isso tudo influenciou o comportamento dos habitantes da pacata cidade de Pará de Minas.

 

Pouco mais de seis meses depois daquele inusitado passeio dos jogadores pelo centro da cidade,  homem usar bermuda ou short virou coisa corriqueira. As mulheres se tornaram freqüentadoras do estádio. Antes, poucas se dispunham a comparecer e eram sempre parentes ou namoradas de algum craque: nas décadas de 1920/30, a pioneira dona Neném Coutinho (Heráclita Coutinho de Melo Franco), mãe do cracaço Wilson Melo Franco;  a partir do final dos anos 1940, vieram outras: dona Conceição Teodoro, esposa do Chuim do bar e mãe do cerebral Coteco, verdadeiro inventor da cobrança de faltas chamada de “folha-seca”,  imortalizada pelo genial Didi, campeão do mundo; as irmãs Bilia, Izaltina e Ernestina Marques, a primeira delas, mãe do jovem meia Careca (José Niwton de Sousa, depois técnico e árbitro de futebol); a Marta Morais, filha do legendário professor José Morais, que ia torcer pelo namorado Zé da Uca;  a famosa biscoiteira Isabel David, que não largava nunca sua sombrinha, arma que usava para bater na cabeça de quem ousasse criticar o filho Antônio Walter ou seu sobrinho Davizinho, este,  um craque  capaz de passar jogos e jogos sem errar um único passe. A já anciã Isabel David que morreria centenária, guardava seu carinho também para os outros sobrinhos Luiz e Silvio da Ica, duas lendas do Paraense. A pré-adolescente Hila Flávia, que morava ali perto, era outra que estava sempre pelo estádio novinho em folha, a torcer pelo pai Hugo, já em final de carreira.

 

Depois, a década de 1960 foi quebrando tabus, enterrando velhos hábitos  e costumes estabelecidos;  e o mulherio passou a dividir as arquibancadas com os marmanjos.

 

Penso mesmo que os novos hábitos influenciaram decisivamente as eleições municipais de 1962, quando, um operário, o mulato Walter Martins Ferreira,   chegou ao poder em Pará de Minas, quebrando uma escrita centenária. Pela primeira vez um cidadão desvinculado das elites e de origem extremamente humilde, foi eleito prefeito do município.

 

Lá fora, os irmãos John e Bob Kennedy surgiram e foram abatidos a tiros como  coelhos, pela extrema direita americana,. Assim como Ernesto “Che “ Guevara,  Martin Luther King e  Malcoln X.  Logo vieram  Mary Quant e a mini-saia;  a pílula anti-concepcional;  o fusca se popularizou e virou sonho de consumo; os Beatles, os Rollings Stones, Bob Dilan e Joan Baez;  no Pará  os Mísseis na Rota 70, na segunda metada da década;  o movimento “black Power”, cuja expressão no Pará foi o  ainda adolescente José Maria Pimenta, o Cri, com sua enorme cabeleira, para desespero da mãe dona Evarista; o movimento hippie;  e Daniel Cohn-Bendit que botou a estudantada nas ruas de Paris e fogo na Europa. A  Bossa Nova se mudou para Nova Iorque; a Jovem Guarda; a maconha, cuja primeira muda foi plantada em Pará de Minas, bem atrás do muro do estádio, às margens do ribeirão e logo se popularizou. Foi trazida  por um lateral esquerdo loirinho,  paranaense bom de bola, que chegou numa das últimas barcas  do Paraense;  a ditadura militar, o AI-5,  o movimento estudantil que explodiu com a morte do paraense (PA) Edson Luiz;  os festivais de música, Chico Buarque, Jair Rodrigues, a inesquecível Ellis,  Caetano e os novos baianos Gil, Betânia e Gal, e o maluco beleza Raul Seixas.

Nos anos 1960 a televisão se tornou essencial na vida das pessoas, trazendo tudo de bom e de ruim, surgiu a Rede Globo, o homem pisou na Lua, com transmissão direta da tevê.

Tudo isso que está aí começou naquela década e no Pará teve inicio com as sandálias do negro Mituca e de seus companheiros de time, podem crer.

 

Luiz David

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