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CRÔNICAS DA PANDEMIA

A VISITA

Não sou do tipo que levanta mais tarde aos domingos. Costumo saltar do berço no máximo quinze minutos depois de acordar, o que costuma ocorrer entre cinco e quinze e cinco e meia da manhã. Acordado a primeira coisa que faço (eu e o restante da humanidade) é abrir os olhos e a segunda é ligar o rádio que está à cabeceira.  Costumo ouvir rádio pela manhã, três emissoras são as minhas preferidas em faixas específicas de horário: até as seis da manhã ouço a Musirama (92.1) de Sete Lagoas, entre seis e seis e meia mudo para a Itatiaia de BH (95.7) para  ficar sabendo das últimas noticias do futebol pelo programa “Tiro de Meta” que está no ar há uns cinquenta anos. Na mesma Itatiaia ouço as chamadas para o grande Jornal da emissora que se alonga até as nove horas, mas faz já muito tempo que não ouço. Assim, ás seis e meia rodo o dial para a Santa Cruz (100.3) e boto no programa do Wilsinho da Floresta que começa ás cinco e estica o horário até as oito, quando passa o comando da nave ao povo do jornalismo (Myrtes Pereira) da emissora comandada pelo Padre Geraldo Gabriel, que às sete horas lê e comenta o evangelho do dia, enquanto Wilsinho bebe um café na cantina da rádio.  A terceira coisa que faço ao levantar-me é arrumar a cama, dobrar cobertores, etc. tarefas que aprendi a fazer desde o tempo em que fui ‘laranjeira’  no quartel do 12º RI. Laranjeira é o soldado que mora no quartel e precisa lavar suas próprias roupas e ‘fazer’ a cama. Da parte da lavanderia há décadas que só lavo as cuecas. Quem já foi milico sabe como são essas coisas.

Gosto de escrever desde bem cedo e assim aumento um pouco o volume do rádio que segue no quarto enquanto eu já estou noutro cômodo onde fica o computador. Com o aparelho auditivo original, de nascença, funcionando há setenta e três anos (ainda na barriga da minha mãe com toda certeza eu já ouvia meu pai na ferraria malhando o ferro na  bigorna, ou o barulho do carvão crepitando na forja) naturalmente que já não ouço tão bem quanto há vinte ou trinta anos atrás.  O general Luiz Carlos Guedes, um dos chefes militares da “Revolução” de 1964 por exemplo, morreu atropelado em Londres em 1976, por não ter ouvido o apito de um guarda que o advertia para não atravessar a rua pois  estava vindo um ônibus. Não era um busão qualquer, mas um daqueles monstrengos  de dois andares que acredito só rodam em Londres. Daí que  (eu penso assim)  o general além de meio surdo precisava também trocar os óculos.  General Guedes morreu aos setenta e quatro, eu completo setenta e três em junho, muito natural que meus sete sentidos deem uma rateada  de quando em vez. Por isto administro o meu astigmatismo: 0,75 O.E. e um pouco menos no olho direito, ou vice-versa, preciso conferir a última receita. Mas eu não sabia até ontem que estou com a audição avariada. Fiquei sabendo por uma vizinha que nem conheço.

Foi assim. Estava eu um pouco antes das nove horas entretido na leitura dos jornais disponíveis na internet quando a campainha do apartamento tocou. Raciocinei rápido: é algum morador do prédio, pois a campainha fica á porta. Se fosse alguém de fora acionaria o interfone que fica ao nível da rua, no portão de entrada do prédio. Enquanto me dirigia até porta pensei que algum vizinho estava chamando para pedir emprestado uma xicrinha de açúcar ou três colheres de pó de café; essas coisas de vizinhos. Abro a porta e SURPRESA!!!! na minha frente a proprietária do apartamento em pessoa, que mora a boa distância daqui. Ela costuma aparecer semanalmente no prédio para uma vistoria, mas nunca chama os inquilinos e nunca vem aos domingos. Pensei rápido: cobrar aluguel atrasado não é a razão da visita pois no meio da semana eu tinha acertado tudo. Qual a razão da inesperada visita então? Convido-a a entrar, ofereço-lhe café que ela recusa, conduzo-a pelos cômodos para que ela veja como o seu patrimônio está sendo bem cuidado; nenhum prego nas paredes, armários limpos, os dois banheiros  impecáveis, a cozinha um brinco ( a senhoria ou locadora, não sabe, mas na sexta-feira a zeladora do apê que vem a cada dez dias tinha passado por aqui).  Só então eu fiz a pergunta que não podia calar: a que devo tão honrosa visita? A resposta foi em forma de pergunta, com um certo constrangimento: você conhece a sua vizinha da casa que fica na rua de baixo? Respondi que não e acrescentei que daquela casa eu apenas vislumbro o telhado. Não acrescentei, mas podia ter respondido sim, se eu tivesse vocação para ‘Carolina’ aquela personagem de uma canção do Chico Buarque que venceu até festival de música nos anos 1960; a Carolina de olhos tristes  que passou tanto tempo debruçada na janela que não viu o tempo passar por ela, talvez eu soubesse quem são as pessoas da vizinhança. Pois então, continuou a visitante, a vizinha mandou-me uma mensagem pelo watsapp (?)  pedindo providências quanto ao volume de seu rádio, que a está incomodando e impedindo concluir as suas horas de sono, e que não aguenta mais ouvir a rádio Santa Cruz. Na mensagem a vizinha disse que estava fazendo a queixa e que se o rádio continuar em volume tão alto tomaria outras providencias que não explicitou, mas que eu ironicamente pensei mas não disse, em comprar tapa-ouvidos, o que não deixa de ser uma solução. E disse que me conhecia bem,  pois foi minha colega de escola, informação que levou-me a calcular a idade dela; se foi minha colega de classe, já terá passado dos sessenta anos, pois eu estudei o ginasial que não conclui, entre 1971 a 1975. Conclui que a vizinha está atualmente com a idade entre 62 anos a 65 anos, fiquei sabendo que é casada mas a visitante não soube explicar quem é o marido; vai ver pode até ser meu amigo. Outra conclusão a que cheguei: a vizinha está com a sua capacidade auditiva nos trinques, pois o meu rádio é um chinês muito sem-vergonha, que mesmo se eu quisesse não alcançaria um volume de decibéis capaz de incomodar a vizinhança. Mas a reclamação dela procede quanto ao horário, pois entre as sete e  oito da manhã é  quando eu forço a decibelagem (acho que acabei de inventar a palavra) do chinês mequetrefe.

Entretanto, a meu favor eu apresento como justificativa o fato de não pensar que alguém da redondeza durma até as oito horas. Este é um bairro de pessoas que saem cedo para o trabalho. Costumo tomar meu café apoiado na pia da cozinha sobre a qual está uma grande janela de vidros de onde eu vejo a partir de seis horas a meninada passado rumo á escola que fica logo a frente; os moradores saindo de casa em seus carros e motos, muitos a pé. É uma rua de trânsito praticamente local, pois é pavimentada de poliedros, quem não reside ou não trabalha nela, prefere circular pela rua de cima e/ou pela de baixo que são asfaltadas. Aliás, as casas da rua de baixo onde vivem meus vizinhos, estão bem abaixo da minha janela; o apartamento que habito está no quarto andar; as casas estão  abaixo do piso  da garagem do prédio. Se eu quiser espionar vizinhos precisarei debruçar na janela e meu nome não é Carolina Buarque de Holanda. Além do que, ocupo meu tempo lendo, escrevendo, vendo filmes na tevê, fazendo bolos, etc. O fato é que ontem não ouvi rádio; e hoje ouvi mas com fones de ouvido, daqueles grandes, que pilotos e o povo das rádios usam. E também comecei a mudar meus hábitos: vi televisão até a meia-noite e depois fiquei até as três e meia  da madrugada escrevendo esta peça. Se depender de mim, a minha vizinha dormirá até o meio-dia; que tenha um sono feliz.                                                                                                                                                                                                      Recebi a advertência da senhoria e ela se foi feliz com a missão cumprida.

Já fui um carbonário, atualmente estou mais para bombeiro pacifista, quase um hippie, adepto da filosofia da paz e do amor.

Feliz Natal a todos ! (LUIZ VIANA DAVID)    

Luiz David

One Comment

  1. Devido a uma reclamação de uma vizinha que acorda mal humorada, você escreveu essa crônica deliciosa… Estou pensando em contatar essa vizinha… rs…rs…rs… pois, outras virão, certamente.

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