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ELA CHEGOU. ESTÁ DE PASSAGEM, MAS É MUITO BEM VINDA.

Eu sabia que ela ia chegar por esses dias. É sempre assim, quando os dedos mínimos de meus pés doem, é sinal de que ela está a caminho. Sobre esses dedinhos, cultivei durante décadas, calos, um para cada. Há alguns anos, fui recomendado pelo calista a dar um fim neles e, me desfiz dos dois. Mas sempre que ela está para chegar os dedos doem, como se  ainda estivessem ali, secos e petrificados. Certa vez li um artigo sobre o ex-presidente Lula, onde o articulista diz que Luiz Inácio ainda sente o dedo mínimo. amputado  por acidente de trabalho, há mais de cinquenta anos. Um amigo meu, que perdeu parte de um braço em acidente de carro, também sente coçar a mão que não tem mais.

Eu sabia que ela ia chegar, pelo aviso dos calos inexistentes e pela constatação dos fiscais da natureza, essa categoria de trabalho muito em voga atualmente, quando os profissionais da área passam longas horas apreciando as mudanças da natureza, do clima especificamente. Um deles, famoso em Minas Gerais, com programas em rádios e canais de televisão, além de perfil em todas as redes sociais, foi explícito: “ela está chegando, pegou carona com uns ventos argentinos, que, fugindo do frio,  estão a caminho do Nordeste brasileiro. Devem ser ventos parentes das aves de arribação cantadas pelo poeta. O fiscal foi além, informando que ela não vem para ficar, se trata de uma visita rápida, um final de semana apenas, de hoje até domingo, quando ela já estará rumando para o norte de Minas.

Ontem, fui dormir pouco depois das dez horas. Antes de penetrar no reino de Morfeu, pensei em recebê-la hoje de manhã, antes do almoço, e para celebrar a sua rápida passagem tomaria duas ou três doses de boa cachaça, quem sabe quatro, acompanhada de uma galinha ao molho pardo, que a assessora de assuntos culinários deixou pronta, ontem, antes de encerrar o expediente.

Lá pelas duas horas da madrugada acordei com um barulhinho na vidraça, abri os olhos e pelo embaçamento do vidro percebi que era ela batendo, parecia dizer que pegou carona numa onda de ventos mais apressados e antecipou a chegada. Levantei-me então, abri a janela e estendi as mãos para ela, em sinal de boas vindas. Ela estava fria, nem deu conta de falar que era culpa do vento que soprava. Deixei que ela entrasse no quarto e se espalhasse pelo chão, e até deitasse na cama, que a saudade dela era muita. Fiquei ali por vários minutos, curtindo a sua volta. Sei que no domingo ela irá embora, talvez antes, pois os ventos que a trouxeram não são muito pontuais. E quando ela se for, também não deixará marcada a data da próxima visita; pode ser breve, ainda no mês de agosto; ou quiçá em setembro quando certamente voltará com a sua amiga inseparável, a primavera. De qualquer forma, estou curtindo muito a passagem dela por nossa cidade, que a esperava ansiosamente. Afinal, a longa ausência dessa amiga estava deixando todo o meu povo com os nervos à flor da pele. E ela, além de agradável, tem esse poder de esfriar os ânimos dos mais exaltados.

Por tudo isso, estendo minhas mãos a ela e, com o melhor sorriso estampado no meu velho rosto, digo:

Bem vinda querida chuva, nós que a amamos precisamos muito de você. Não nos deixe mais por tempo tão longo. (Luiz Viana David)

Luiz David

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