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GETÚLIO VARGAS E EU

Eu tinha sete anos em agosto de 1954. Ainda não estava no grupo escolar; por eu ter nascido num mês de junho, começaria o curso primário apenas em 1955. Minhas irmãs, Luiza, Lúcia e Lizaura eram alunas numa escola de freiras que ficava a cem metros de nossa casa, na Vila Magnesita, na divisa de Belo Horizonte com Contagem. A caçula Lílian ainda não tinha completado o primeiro aniversário; o caçula definitivo, Lésio, só nasceria dois anos depois e o primogênito Lúcio, era interno do Instituto João Pinheiro, uma fantástica instituição onde os alunos estudavam e aprendiam uma profissão. Assim, quando meu pai saia para o trabalho eu ficava em casa fazendo companhia a minha mãe. Meu pai, ferreiro de profissão, trabalhava na Magnesita, há alguns anos. A região onde ficava o bairro operário era mesmo uma imensa fazenda, com enormes áreas ainda desocupadas, entre um ou outro galpão, de indústrias  incipientes,  que mais tarde se transformariam no pujante parque industrial de Contagem, um dos maiores do Brasil.  Não raro, a molecada da vila ia até o bairro Barreiro, a pé, cortando caminho pelo meio do mato, atravessando o lugar chamado Ferrugem, onde havia uma estação da Central do Brasil, região que hoje atende pelo nome de bairro das Indústrias. Se naquele tempo o Barreiro tivesse o nome de “atoleiro”, ninguém ia notar a diferença. Eu levei muitos anos para entender porque o Barreiro pertencia ao município de Belo Horizonte e a região que ficava em frente, só que no lado oposto da avenida Amazonas, era território de Contagem.

No inicio do mês de agosto houve uma grande movimentação na nossa vila. Só se falava na inauguração de uma nova fábrica, a Mannesman, à qual muitos se referiam como se  a palavra fosse oxítona e, outros, como se proparoxítona fosse, confusão que permanece sessenta anos depois. O fato é que para inaugurar a poderosa indústria alemã, viria ao Barreiro ninguém menos do que o idolatrado presidente Getúlio  Vargas. O governador Juscelino, mesmo queridíssimo pelo povo, sua presença não importava muito, considerando que de vez em quando dava as caras na Cidade Industrial. Os meninos da vila Magnesita ficamos alvoroçados com a noticia, livres e soltos naquele mundão, não haveríamos de perder por nada a tal inauguração. Nós não sabíamos, mas a situação política do Brasil naqueles dias estava péssima.   Eu era dos menores, mas cismei de ir também, claro que escondido de dona Zinha, que costumava ficar nervosa com meus sumiços. E fomos  em bando, liderados por um menino mais velho, de nome Tõezinho, filho de um carpinteiro da fábrica de nome Josafá, mas que o bairro todo conhecia por sô “Fazinho”.  Quando chegamos, a comitiva presidencial já estava de volta, a nuvem de poeira levantada pelos grandes carrões pretos oficiais, obrigava os motoristas a guiarem em baixa velocidade, de forma que nós, os moleques, à beira da estradinha, nem de relance conseguimos ver o presidente Getúlio,  por alguns segundos que fosse. Alguns meninos ainda correram ao lado carro, agitando as mãos e gritando nome do presidente, que (eu imaginei) estava sentado no banco traseiro ao lado do governador Juscelino.  Na verdade,  a poeira era tanta que eu mal consegui vislumbrar o carro presidencial bastante empoeirado.

Quando cheguei em casa, na volta do dia, faminto e empoeirado, dona Zinha aplicou-me uma tunda de cinto, da qual nunca mais esqueci. Antes de autorizar meu almoço fez-me entrar numa grande bacia (não havia chuveiros na vila) e despejou em cima de mim um grande balde d’água. Depois de limpo, para vestir, deu-me uma calça que era do meu irmão Lúcio e assim, alguns números maior. Como a calça estava sempre caindo por ser larga, e eu  proibido de amarrá-la até mesmo com  barbante, fiquei refém em minha própria casa por uns dois ou três dias, com pelo menos uma das mãos ocupadas segurando a indumentária. Mas não fiquei revoltado, considerei o castigo  à altura da aventura, afinal  eu tinha estado bem perto, do grande ídolo do meu pai, o presidente Getúlio Vargas, o “Pai dos Pobres”.

Uma das minhas tarefas diárias, era a de levar o almoço de meu pai até a Magnesita, que ficava na avenida Amazonas, onde ainda está em 2014. A fábrica não ficava distante da vila operária, talvez menos de dois quilômetros. Alguns minutos antes das onze horas,  eu descia rumo à avenida, com a marmita queimando minhas mãos, embrulhada em um pano,  e uma garrafinha cheia de café, para entregar ao meu pai na portaria da fábrica. Às vezes eu levava também o almoço de um mestre-torneiro tchecoslovaco, que morava na casa ao lado da nossa, o nome dele era Hermann  Brabeck e a mulher dele, dona Maria, magrinha e de olhos azulinhos, eles não tinham filhos.  Aos domingos dona Maria  dava-me alguns tostões em paga, o suficiente para garantir o ingresso na matinée do cinema que ficava dentro da fábrica de cimento Itaú,  exatamente onde em 2014 estão os cinemas do shopping Itaú Tower.

Mas naquele dia 24 de agosto de 1954 tudo seria diferente. Logo depois de atravessar a Praça A (hoje Louis Ensch), no passeio ao lado do Pastifício Vilma, diante da antiga fábrica de postes CAVAN, observei que uma multidão descia a avenida Amazonas, vindo da Praça da CEMIG. Eram centenas de pessoas, talvez alguns milhares, todas gritando o nome do presidente Getúlio. Foi assustador para mim, um moleque de sete anos, ver aquela manifestação. Corri em direção ao portão da fábrica, que parecia enorme aos meus  olhos de  menino. Eu achava aquele portão uma maravilha tecnológica, simplesmente  pelo fato de correr sobre  trilhos, quando acionado pelo porteiro. Muitas vezes, enquanto esperava meu pai vir buscar a marmita, eu ficava pegando carona no portão, indo e voltando alguns metros, para desespero do porteiro.  Naquele dia, cheguei a tempo de ver a multidão enfurecida derrubar o portão e invadir a fábrica, obrigando a sua paralisação. Ao cair o portão, tombado para o lado de dentro com enorme estrondo, o caminho ficou aberto para a multidão. Eu lá no meio daquele tumulto todo, sendo empurrado, abraçado com as duas marmitas, quando avistei meu pai correndo na direção contrária, rumo à portaria, e atrás dele o ofegante sô Brabeck, com seu bonezinho de golfista e óculos de fundo de garrafa. Quando meu pai me viu, correu em minha direção, pegou-me pelo braço e desviou-nos do restante dos revoltosos. Nem ele, nem o velho tchecoeslovaco pensaram nas marmitas que eu continuei carregando. Saímos por um portão lateral, que ficava em frente à fábrica de farinha Mani e fomos em direção ao bar que ficava na esquina da Amazonas, e pertencia a um eletricista da Magnesita, sô Antonio de Oliveira, que depois seria padrinho do meu irmão Lésio. Meu pai frequentava aquele bar nos finais da tarde, após a jornada de trabalho, mas àquela hora daquele dia excepcional todos os  amigos dele estavam lá,  com os ouvidos  atentos ao rádio, que a cada momento dava edições extras do “Repórter Esso” informando detalhes da morte de Getúlio Vargas, que havia se suicidado algumas horas antes. Só então eu fiquei sabendo do ocorrido. O clima no bar era de consternação e tristeza, como se cada um dos presentes ali tivesse perdido o próprio pai,  de maneira inesperada e trágica. Foi a impressão que eu guardei,  pois mais do que nunca, naquele momento pude constatar pessoalmente,  que o presidente morto era de fato o pai dos pobres, o defensor dos “trabalhadores do Brasil”,  a quem ele dirigia seus principais discursos.  Naquele dia, mais falado  do que o nome de Getúlio, apenas o de outro político, que ganhou a minha ojeriza eterna desde então: Carlos Lacerda, de quem eu nunca tinha ouvido falar, mas  todos o culpavam pelo ato extremo do nosso pai, ou melhor, do presidente Vargas. E três letrinhas, repetidas à exaustão, também ficaram gravadas na minha memória: UDN; sigla que para mim era sinônimo de Carlos Lacerda e que devia ser combatida sempre.

Foi a primeira vez que eu ouvi o ronco das ruas, dos trabalhadores, do povo na sua mais pura essência. Ouviria novamente semelhante ronco oito anos depois, em 1962,  em menores proporções obviamente, mas tão impactante quanto. Foi quando,  já morando em Pará de Minas, vi de perto os trabalhadores de minha cidade: operários, comerciários, bancários, trabalhadores rurais, o proletariado enfim;  carregando nos ombros o  jovem bombeiro hidráulico Walter Martins Ferreira, o “Walter do sô Augusto Bombeiro”, que acabava de ser consagrado nas urnas o primeiro prefeito operário, talvez do Brasil. Foi de arrepiar aquela passeata, para mim então,  um ginasiano, foi como se estivesse assistindo as manifestações jubilosas ocorridas após a assinatura da Lei Áurea, pela princesa Isabel.  O prefeito eleito era do partido PTB, o mesmo partido fundado por Getúlio Vargas, o que por si só já lhe garantiria minha simpatia; que era ainda maior pelo fato de ser também o mesmo partido do presidente João Goulart.  A eleição do petebista Walter Martins foi um divisor das águas políticas em Pará de Minas.  O prefeito eleito derrotara de uma só vez todas as poderosas oligarquias políticas patafufenses, que se revezavam no poder municipal há mais de cem anos e a ele só retornariam vinte e oito anos depois, com a eleição para prefeito do fazendeiro e empresário Inácio Franco.

O prefeito Walter Martins se transformou em atração política,  sempre que era recebido, não apenas nos gabinetes dos poderosos mineiros, assim como nos de Brasilia, era  anunciado como “o homem que derrotou de uma só vez os candidatos apoiados pelo Valadares e  pelo Magalhães”.  Há poucos anos fiz uma entrevista com Walter Martins, durante a qual ele se emocionou duas vezes: as falar de seu amigo Jango Goulart e do presidente Getúlio Vargas, quando seus olhos lacrimejaram. Walter estreou na política elegendo-se vereador em 1954, menos de sessenta dias depois da morte daquele, que para ele foi o maior brasileiro de todos o tempos, o maior de todos os amigos dos trabalhadores do Brasil, o Pai dos Pobres: presidente Getúlio Dornelles Vargas.

Luiz David

2 Comments

  1. Fui aluno interno no Instituto João Pinheiro, até o ano de 1962. Sinto falta da história bem contada daquele estabelecimento e, como foi possível o governo deixar acabar uma instituição tão séria e comprometida com a educação de nossas crianças. Uma lástima. Agora temos FEBEM e outras escolas que não educam, como o Instituto João Pinheiro educava.

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