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O CONSELHO DOS ANCIÃOS

O CONSELHO DOS ANCIÃOS

Tão logo a loja de peças para automóveis cerrava as suas portas, às seis horas da tarde, eles começavam a chegar e a se sentar no degrauzinho da loja, fazendo de encosto as duas portas de aço. Por ali ficavam em animadas conversas até um pouquinho antes das oito horas, quando quase todos retornavam às suas casas para assistirem (os que tinham televisão em casa, e eram raros) ou ouvirem o noticiário pelo rádio (que todos tinham pelo menos um aparelho em casa), que ia ar logo após o programa “A Voz do Brasil”. Geralmente ouviam o “O Repórter Esso”, o mais famoso noticioso do país durante décadas.

Naquelas quase duas horas de encontros diários, os “velhinhos” discutiam sobre tudo, principalmente política, assunto que não faltava naqueles tempos, final da década de 1950 e todos os anos da década 1960. Vejam só: 1959 Fidel Castro e seus barbudos tomam o poder em Cuba; 1960 eleições gerais no Brasil com vitória de Jânio; e nos Estados Unidos, com vitória de John Kennedy repercurtindo no mundo inteiro, incluive no Pará de Minas; 1961 Jânio renuncia ao mandato depois de apenas sete meses no Poder; a batalha incruenta pela posse de Jango; a implantação do regime parlamentarista; 1962 as eleições municipais com a vitória histórica de Walter Martins, operário pobre e afro-descendente, eleito prefeito, quebrando uma escrita que durava mais de cem anos; no plano internacional, a crise dos mísseis russos implantados em Cuba, que provocou uma reação norte-americana que quase levou a guerra nuclear; e o Brasil ganhando o bicampeonato mundial de futebol no Chile; 1963 marcou o fim do parlamentarismo já no dia seis de janeiro com o plebiscito pedido por João Goulart; a agitação pelego/comunista, a reação dos militares. 1964 trouxe o Golpe Militar de 1º de Abril e a implantação do regime militar no país; 1965 o Paraense conquista o título de campeão da Zona Centro e o Estádio Mineirão é inaugurado: Natal,Evaldo, Dirceu Lopes, Tostão e Hilton Oliveira são nomes cantados em prosa e verso, também na reunião diária dos velhinhos. E Hugo Marinho, vereador, ex-atleta e ex-presidente do Paraense, traz Tostão à cidade e passa com ele pela esquina; de vez em quando uma crise sacode Brasília com a cassação de alguns mandatos, que são dissecados pela turma de “doutores em política”, que são todos da boa turma. 1966 marca o nascimento de uma estrela chamada José Porfírio de Oliveira, que ganha a eleição municipal daquele ano, a primeira de três vitórias (no futuro JP venceria também em 1976 e 1988); 1967 foi mais ou menos tranquilo, com todos observando a gestão de José Porfírio, que dava sequência a onda de desenvolvimento iniciada pelo seu antecessor Walter Martins, fazendo obras por toda a cidade e pela zona rural. Novidades só as vindas de Brasília. Os velhos partidos UDN, PSD, PTB, PR, e todos os outros, não existem mais. Foram extintos um ano antes pelo ditador Castelo Branco, em represália pela vitória dos candidatos de oposição no Rio de Janeiro (Negrão de Lima foi eleito governador) e Minas Gerais (Israel Pinheiro foi eleito) ambos juscelinistas ardorosos. Foi a resposta popular à cassação dos direitos políticos  de JK e ao seu exílio forçado. ,Agora eram tempos de ARENA e MDB, e para acomodar todos o políticos em apenas dois partidos, foi criada a figura da sub-legenda, no máximo três por partido. Na prática a confusão partidária continuou a mesma de sempre, pois ARENA e MDB (este, considerado oposição consentida) seguiram divididos. 1968 foi ano de turbulência política, passeatas contra o regime e se encerrou em 13 de dezembro com edição do Ato Institucional número 5, que mergulhou o país, agora sim, em cruel ditadura. Até a reunião diária dos velhinhos foi afetada, pois reunião de três ou mais pessoas, passou a ser considerada comício. Com o passar dos meses, o grupo foi voltando aos poucos ao ponto de costume. Mas em 1969 todos viram pela televisão, assustados, a chegada do primeiro homem à Lua. Os comentários foram intensos, muitos deles (dos velhinhos) morreram sem acreditar que tal façanha fora mesmo realizada. Para esses, tudo não passou de propaganda norte-americana, para distrair o mundo das atrocidades cometidas na Guerra do Vietam. Nada passava sem que fose comentado no “Conselho dos anciãos” como muitos passaram a se referir ao grupo de sábios cidadãos.

E assim se passaram dez anos naquela esquina, em 1970 já barulhenta e pouco acolhedora. Muitos dos personagens já não estavam mais neste plano, os demais pouco saiam de casa.

A loja de auto-peças em cuja porta os anciãos se reuniam, era a “Melgaço Auto-Peças”, administrada pelos filhos do sô Antônio Melgaço e de dona Zulmira, que viviam no apartamento em cima da loja. Os filhos Osvaldo (Dinho) e Osmar (Doca) tocavam a loja, assistidos pelo jovem Jurandir Soares, que está vivo  em 2018, para confirmar a história; enquanto isto,  sô Antônio Melgaço se preocupava mais com a fazenda no distrito de Catita, onde passava boa parte do tempo. O terceiro filho, José Aniceto, tinha morrido em grave acidente rodoviário no final dos anos 1950. Mas quando estava na cidade, sô Antonio era voz respeitada na turma que se reunia sob a sua marquise. Udenista roxo, sô Antônio Melgaço vinha de família que detinha o poder político na vizinha cidade de Pequi. Um sobrinho dele, Waldir Melgaço, foi várias vezes eleito deputado pela região mas majoritariamente pela comarca de Uberlândia, onde advogava e casou com a filha do Comendador Alexandrino Garcia, português, fundador do poderoso grupo empresárial que atualmente se chama ALGAR.

O apelido  “conselho dos anciãos” era mais um sinal de respeito, pois todos estavam com a idade oscilando entre cinquenta e sessenta anos. Eram tempos em que alguém com seis décadas de existência era considerado em idade provecta, pois o IBGE dizia que os brasileiros difilmente passavam desta idade. Era assim mesmo.
A turma contava com o pedreiro José Lúcio, que chegava ao lugar quando os outros já estavam se retirando. Ali permanecia, encolhidinho, muitas vezes já sozinho, lendo o jornal “Estado de Minas”. José Lúcio ficava esperando as muitas e lindas filhas retornarem da fábrica de tecidos onde trabalhavam, ou da Escola de Comércio, onde algumas estudavam. Nunca se recolhia antes de onze da noite. José Lúcio foi exímio pedreiro, especializado em assentamento de azulejos, uma novidade naquele tempo; ao ponto de desmanchar uma parede inteirinha já azulejada, se ao final do trabalho descobrisse uma peça mal aprumada. Sabia tudo de política, municipal, estadual e nacional. Uma voz respeitada e ouvida pelos políticos da terrinha.

Também frequentavam a esquina o mecânico de máquinas Antonio Joaquim da Costa (apelidado Volt-Ampére não me perguntem por que) que depois se elegeu vereador; meu pai e ferreiro José David Netto -Negrito; o primo dele David Ferreira Neto -Davizinho, bombeiro hidráulico e um dos maiores futebolistas de Pará de Minas em todos os tempos; Walter Faria (Walter do Lindorifo), comerciante de baterias e sobrinho de José Lúcio; Dinho Melgaço, filho do sô Antonio já citado; Divino Guimarães, o mais jovem, um dos donos da Padaria Guimarães que ficava pertinho; o comerciante José Pinto Neto, cuja “venda” ficava no endereço ao lado; o dono de bar Lalá Pimenta, que morava numa das primeiras casas da rua Nossa Senhora das Graças, ali pertinho; sô Getúlio Lara, dono do bar São Geraldo logo em frente; sô Vicente Sousa, fazendeiro, que havia mudado com a família para a cidade, para facilitar o acesso dos filhos à escola; Maninho Lara, dono de pensão na rua Tiradentes e irmão de sô Getúlio Lara já citado; sô Chuim, que por muitos anos anos foi o dono de restaurante na mesma esquina, que levava o onomedele; sô Geraldo do Jafé, dono posto de gasolina principal referência da esquina (o posto que se incendiou e cujas chamas foram apagadas supõe-se que graças a um milagre de Padre Libério); o operário Zula Amaral, que nos horas vagas atuava como balconista de bar. Esses, eu considero os permanentes, de ida diária à esquina para o encontro fraternal. Mas sempre havia por lá outros que passavam de passagem e paravam para um dedo de prosa, como o alfaiate Juquinha Pimenta, o vice-prefeito e comerciante de tecidos Dico Mendonça, sô Zé Lagoa, ruralista qe dono de  um moinho de fubá na Rua João do Neto; sô Irineu Nunes, dono de Ferro Velho; José Bento, soldado reformado da PM, que morava na Rua Tiradentes com sua esposa Alzira; o contrutor José Aurora. Nenhum deles morava a mais de duzentos metros de distância dali.
São pessoas cujas imagens se fixaram em minha memória desde a adolescência, que não se apagam, e eu acho muito bom, pois o contrário disto pode ser a ameaça daquela “coisa” diagnosticada por aquele médico alemão, cujo nome evito falar ou escrever.

Faltou dizer que a esquina é a de Rua Tiradentes com a Rua Direita.
Voltarei a este endereço proximamente.

Luiz V. David

Luiz V. David

 

Luiz David

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