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OUTROS ESTUPROS

OUTROS ESTUPROS

Vim conhecer a palavra “estupro” e outras dela derivadas já na adolescência. Naquele tempo a expressão “estuprar” era comumente substituída por outra também pesada, “deflorar”. E o defloramento de uma donzela era crime grave previsto no Código Penal. Tive um tio-avô, bem casado, prole numerosa, mas muito namorador: um pegador, diriam dele nos dias de hoje, ou tremendo espadão. Bom de bico também; encantava as mulheres com sua lábia. Até que um dia uma solteirona mal amada, já entrando na idade da loba, que vinha recebendo toda atenção desse meu tio comedor, que a visitava com frequência a pretexto de fazer reparos nos encanamentos da casa. Pois a loba de repente encheu-se de ciúmes e não quis admitir que titio desse também assistência técnica a outras colegas dela, da irmandade. E toda cheia de falsos pudores foi até à delegacia de polícia e registrou queixa contra meu tio, que a teria deflorado. Boa parte da população masculina do Pará de Minas já havia passado pela alcova da beata: principalmente os desvalidos, ou seja, dos rapazes empregados no comércio ao time juvenil do Paraense Esporte Clube, historicamente sem dinheiro e/ou sem idade para irem até à zona “trocar o óleo”, como diziam. No quesito sexo, viviam da caridade da solteirona, que ainda dava um bom caldo. Pois meu tio bom de bico foi processado e condenado a dois anos de prisão, por ter, supostamente, arrancado uma flor que não mais havia naquele jardim, dezenas de vezes visitado por outros garanhões antes dele. E lá se foi o meu tio cumprir a injusta sentença na novíssima e cheirando à tinta Penitenciária Agrícola de Neves. O que é outra história. Quanto à falsa ciumenta e operosa rameira, continuou na sua beatice de missa diária e novenas intermináveis, mas jamais deixou de iniciar sexualmente as gerações de jovens patafufenses. Morreu velhota em meados da década de 1960.

Qual o rapaz de minha geração, nascido entre 1945 e 1955, que nunca ouviu falar do “Curral das Éguas”? Pois então deu-se que nos meados da década de 1960, algumas putas ainda jovens, mas, com mais horas de cama do que urubu de vôo, algumas delas destroçadas fisicamente pela ingestão excessiva de bebidas alcoólicas e noites indormidas, foram praticamente expulsas dos puteiros que existiam na zona boêmia da cidade. Todas negras, analfabetas, miseráveis, oriundas de povoados e municípios vizinhos. Quase todas defloradas (ao verbo aí, ó) ainda na puberdade, geralmente pelo dono ou pelos filhos dele, da casa onde foram acolhidas para trabalhar como escravas. Numa época em que moça deflorada era expulsa de casa, geralmente pelo pai e irmãos homens, quase sempre iam parar na zona da cidade mais próxima. Mas essas mulheres excluídas, de repente se viram ao léu, sem eira nem beira onde passar algumas horas. Foi quando uma delas teve a “genial” idéia de ocupar um pequeno barraco abandonado lá nos altos do Cruzeiro e, quem sabe, transformar o lugar numa quase filial da zona. E assim fizeram. Uma delas foi até o escritório da companhia de eletricidade e requereu um relógio (medidor); outra foi até à prefeitura e pediu que ligassem uma pena d’água. A vizinhança, solidária, contribuiu com alguns móveis e no sábado, com umas dez mulheres atuando, foi aberto o bordel, que não tinha serviços de bar. Os clientes chegavam, davam a sua bimbadinha básica e se retiravam rapidamente. Na função só “papai e mamãe”, que o lugar era pequeno, a fila grande, e não havia espaço e tempo suficientes para que os necessitados desenvolvessem sua criatividade e imaginação. O lugar logo foi batizado de “curral das éguas”, nele, boa parte dos jovens garanhões da cidade teve a sua iniciação nas coisas de sexo. Hoje, todos sessentões, a maioria bem posta na vida, aposentados, alguns ricos, negam de pés juntos que jamais passaram pelo “curralinho”, apelido carinhoso que denuncia a intimidade com o lugar. Quanto às mulheres, algumas morreram prematuramente, pois a chamada “vida fácil” na prática é bastante difícil de viver. As que sobreviveram, conseguiram deixar o ofício e foram absorvidas pela comunidade, tiveram filhos e netos e ainda estão por aí. Certa vez fiz longa entrevista com uma delas, material que pretendo utilizar em livro, mas uma frase dela definiu bem a condição de todas: “Nenhuma de nós estava ali por vontade própria, todas perdemos o cabaço (a virgindade, a flor) à força (o estupro, o defloramento). A zona era o único destino que a gente tinha”.

Prudentina (nome fictício) era uma negrinha sestrosa, bonita, pernas grossas e ancas largas. Morava com a família lá para as bandas do lugar denominado “Pecuária”, onde atualmente existe o populoso e progressista bairro São Cristóvão. Aos treze anos veio trabalhar numa casa de família no centro da cidade. Antes dos quinze foi “currada” por um dos meninos da casa, que tinha a mesma idade dela. Currar era outra expressão muito usada naquele tempo para designar estupro e defloramento, comer à força. Prudentina não se engravidou nem com a curra nem depois, quando passou a gostar de se deitar por aí, quase sempre com rapazotes. Ao entardecer, sempre que voltava para casa, andando por uns trilhos que cortavam o atual bairro Castelo Branco, era sempre seguida por rapazes da cidade à procura de sexo como se animais fossem, atrás de uma fêmea no cio. Nem sempre estava no cio, mas gostava de abrir as pernas, o que seguiu fazendo por algumas décadas. Não sei se já morreu, nem se arranjou casamento. Sumiu assim. Muitos dos que se deitavam nos matos com Prudentina, agora garantem que dela, nunca ouviram sequer o nome. Mas era até cômico de ver, quando Prudentina entrava na rua Direita, durante o dia, comércio fervilhando, a quantidade de rapazotes e jovens senhores que tratavam de se esconder para não serem vistos por ela. Traídos pelo subconsciente.

Luiz David

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