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VELÓRIO EM CASA ENTERRO A PÉ

VELÓRIO EM CASA ENTERRO A PÉ

Em Pará de Minas em época até recente quando morria alguém o velório  acontecia na própria residência do falecido. O primeiro velório público da cidade ficava na Rua Coronel Domingos, nos fundos do Hospital Nossa Senhora da Conceição. Meu pai que fez a passagem em 19 de dezembro de 1977 foi velado lá por insistência minha. Eu temia que acontecesse com a casa da família o que eu presenciara alguns anos antes, no velório do músico e alfaiate Artur Marques ou Artur do Ivo, muito estimado na cidade tendo deixados centenas de amigos e admiradores e algumas dezenas de familiares. A casa onde moravam sô Artur e dona Mercedes ficava na rua Tiradentes,87, era propriedade  do senhor Antenor Toscano de Brito, que entrou para a nossa história com o apelido “Pedrinho da Jardineira” pois que era dono da empresa que transportava passageiros na linha Pará de Minas / Belo Horizonte. Os ônibus da empresa ficavam numa garage ao lado da casa, isto até meados dos anos 1960, quando já com outro proprietário a garage se mudou para a Rua do Sapo -Rua Coronel Bernardino, onde está até os dias de hoje. Mas o assunto hoje são os velórios a moda antiga como o de sô Artur Marques , que também era conhecido por ‘Clarineta’ instrumento que dominava bem.  Boa parte dos cômodos da residência tinha o piso assoalhado, com tábuas corridas. O féretro estava na sala de visitas, bem no meio, com sô Artur pomposo e morto no caixão. Foi um velório demorado, começou á tarde e só seguiu rumo à última morada na tarde do dia seguinte. Centenas, talvez milhares de pessoas tenham ido se despedir do já saudoso personagem e a Rua Tiradentes, uma das mais centrais da cidade, teve o seu dia de maior movimento. Dona Mercedes já idosa, foi aconselhada a não acompanhar o féretro. Ficou em casa chorando sentidas lágrimas de saudade  do companheiro  de meio século de vida comum. Quando a multidão que acompanhava o caixão virou á direita na rua de mesmo nome, dona Mercedes voltou para dentro da casa e foi quando percebeu o assoalho afundado mais de um palmo. Por obra de Deus o caixão não tinha tombado com sô Artur dentro, pensou ela. A casa de minha família também era assoalhada de tábuas corridas e eu então lembrei a minha mãe dos problemas que poderiam ser causados por um velório ali. Então dona Zinha comunicou á familia que nosso pai seria velado no lugar apropriado: no velório do Hospital e assim foi salvo o assoalho da casa.

Era assim. Se alguém morresse na cidade depois de duas horas da tarde, o sepultamento só se daria vinte e quatro horas depois ou um pouquinho mais, para dar tempo dos amigos e compadres deixarem o serviço nas fábricas ou na roça, ir em casa e tomar banho antes de irem prestar a última homenagem ao falecido. E o féretro, que o povo dizia ser simplesmente “o enterro” partia rumo ao cemitério, na maioria das vezes com passagem pela antiga Igreja Matriz onde um padre ministrava o sacramento da ‘encomendação’ da alma de quem tinha partido. Alguns enterros atravessavam a Rua Direita de uma ponta a outra; os comerciantes costumavam colocar um caixeiro (balconista) mais ou menos de olho na rua observando se vinha algum enterro, pois era hábito cerrarem as portas do estabelecimento quando da passagem do caixão. Aí do comerciante que não observasse essa regra não escrita; seu nome seria execrado pelo povo por muitos dias até viesse o enterro seguinte.   Saindo da igreja, o cortejo fúnebre descia a Rua Tenente-Coronel Roberto e depois de atravessar o córrego Bariri subia a Rua Santo Antonio. onde logo depois da curva do Segredo (de Rua do Segredo) está o hoje hiper-lotado cemitério municipal de mesmo nome.         O carrinho de transportar defuntos era uma novidade que ainda não tinha chegado ao Pará de Minas e os homens do cortejo se revezavam até três de cada lado segurando firmemente nas, ás vezes com tanta firmeza que elas se soltavam e isto não era raro. “Subiu o morro” ou fazer a “curva do Segredo”  eram expressões populares no Pará de Minas de outrora, quando alguém queria se referir a pessoa que já tinha morrido; ou então usadas para admoestar recalcitrantes que insistiam  no consumo de bebidas alcoólicas ou cigarros:  Se cuida amigo ou você não demora a subir o morro; ou a fazer a curva do Segredo.

Outras vezes ir a um enterro podia se tornar um ato dramático: o defunto não tinha amigos  suficientes para carregar-lhe o caixão. muitas vezes por a hora ser imprópria, de trabalho da maioria. Então, homens caridosos, imbuídos de excepcional espírito de solidariedade, deixavam seus afazeres nas lojas e engrossavam a procissão, pois no fundo era uma procissão. Antonio Cecílio de Almeida, o Antonio Casinha que quando jovem fora caixeiro no armazém do Zé Mendonça (esquina de Rua do Rosário com Rua Direita) e naquele começo dos anos 1960 era sócio de uma sapataria (do Zeca Mendes) era um desses cirineus modernos. Eu tinha meus treze para catorze anos  trabalhava na loja ao lado, a Mobiliadora Popular e o vi algumas vezes fazer este gesto de pura compaixão. Na maioria  das vezes ele nem sabia quem era o morto. Quando uma pessoa de maus bofes se excedia no trato com os amigos, vizinhos, etc. esses costumavam ameaçar o indigitado dizendo: –  não haverá ninguém para subir o morro com você quando morrer. Uma cena pungente de enterros era o de crianças: geralmente o caixãozinho branco, carregado por jovens da família, desfilando tristemente pela Rua Direita; ou pela Rua do Alto, no outro lado da cidade. Lembro-me bem do enterro  de um anjinho (recém nascido) quando um jovem senhor, provavelmente o pai da criança caminhou por toda a extensão da rua carregando como se carregasse um bebê  um caixãozinho diminuto branquinho, onde estava acomodado o(a) caçula da familia,  acompanhado por outras duas crianças maiorzinhas, irmãs do anjinho. E caminhou bem no meio da via, sem ser apressado por ninguém, sendo reverenciado por todos, e os que portavam a peça muito comum na época, tiravam o chapéu á sua passagem. Cenas do cotidiano de uma cidade ainda pequena que começava a se soltar das amarras da tradição. 

Não havia uma emissora de rádio na cidade; os jornais existentes não tinham circulação definida; podiam ‘sair’ por semanas a fio como a desaparecerem por meses, da única banca da cidade, do Hélio Mendonça.  Desta carência surgiu o assim conhecido “convite para enterro” ; um panfleto que não passava de uma folha de papel A4 dobrada ao meio onde vinha o texto da nota de falecimento; na face ao alto vinha o nome daquele(a) que tinha morrido, com o nome de todos os familiares de 1º grau: do cônjuge , dos filhos e netos. Seguido de um comunicado curto informando o falecimento do ente querido e o horário do enterro. As tipografias Emilia (do Luiz Martins) e Globo (do Dedé Guimarães) disputavam a primazia de imprimir os convites que cuidavam de distribuir pela cidade até o seus limites: a praça Francisco Valadares (no Alto); a Cooperativa dos Leiteiros (COPARÁ hoje), o Posto do Romualdo na Azambeque (atualmente bairro D. Bosco, rotatória da avenida Ovidio de Abreu que ainda não existia. E pelas ruas do bairro Nossa Senhora das Graças, até o Bar Cantinho do Silêncio, ao lado da igreja de mesmo nome.  Através desses panfletos e com o boca a boca das pessoas, nenhuma morte deixava de ser anunciada. No acervo do Museu de Pará de Minas muspam.com.br existe uma grande coleção desses panfletos avisos/convites. Quando havia a necessidade de velar o defunto para sepultamento no dia seguinte surgia um problema para a família enlutada: guardar e trancar com chaves e ou cadeados tudo de valor mas de pequeno porte. Os familiares não sabiam quem de fato eram os amigos e conhecidos do falecido, deste modo a residência  estava aberta a todos os que iam prantear o defunto. No momentos de pico (digamos assim) do velório pessoas desonestas fazendo-se de íntimas dos familiares costumavam revirar gavetas e outros móveis em busca de algum objeto de valor e até mesmo de dinheiro. Naqueles momentos, os parentes estavam todos em volta do caixão, rezando o terço pela décima vez, ou chorando sobre o corpo.Ás dez da noite as pessoas começavam a se despedir e por volta de meia noite e meia hora só restavam aqueles dispostos a varar a madrugada na casa. Muitos dos familiares esbodegados que estavam também iam dormir um pouco. Nesta hora era servido um lauto café com broas, biscoitos de diversos tipos, pão com manteiga e não me lembro de nunca ter visto pão de queijo nos velórios daquele tempo. Aos chegados numa birita, que iam a velórios para literalmente “beber o defunto” era servido cachaça e geralmente uma espécie de farofa. Quando frequentei velórios a domicilio comecei pela turma do café; mais tarde vi-me fichado no segundo time mencionado acima. E Pará de Minas tinha muitos papa-defuntos que não perdiam velório, embora muitas vezes nem iam ao enterro propriamente dito.Na minha turma, a do Paraminense, vários amigos meus saltavam todas as fases do velório e costumavam chegar ao local já na última parte; a da cachaça com farofa; isto depois de darem uma passada pela zona boêmia.

Quando em 1985  o prefeito Antonio Júlio inaugurou o velório municipal, bem em frente ao cemitério ele não sabia, mas tinha enterrado duas tradições do povo paraminense: o velório no domicilio e o enterro a pé. Houve gente  que reclamou do avento do velório e insistiu em velar em casa os falecidos da família. Então, a cidade tinha extrapolado os limites e mesmo com a evolução que o carrinho manual trouxe, empurrar aquela geringonça pelas ruas de calçamento poliédrico passou a ser tarefa para os fortes, pois as rodinhas giram para todos os lados e houve vez de o carrinho subir pelos passeios. O tráfego de veículo já estava intenso naqueles anos 80 e um enterro passando pela Rua Direita atrasava a vida de todos. Foi preciso uma Lei Municipal que proibisse os velórios domésticos. Mesmo no velório novo e público o costume velar por longas horas permaneceu. No começo deste Século XXI chegaram a acontecer alguns assaltos pela madrugada em velórios da Capital e de cidades vizinhas, quando os assaltantes depenaram as pessoas. Então, precavidos, os paraminenses optaram por abolir o velar na madrugada. Abrindo a sessão de despedidas ás seis da manhã indo até a hora fixada pela família ou pela autoridade sanitária. Nesses tempos de pandemia então reduziu-se ainda mais o tempo: geralmente de duas horas entre as despedidas e o enterro  propriamente dito. Também, no máximo cinco pessoas podem se aproximar do falecido simultaneamente, mas pouca gente tem ido se despedir e confortar familiares enlutados.E em tempos de watsapp a noticia da morte do fulano ou da beltrana chega na Austrália antes mesmo de o corpo esfriar. Se contar sobre os panfletos de comunicação usados antigamente as novas gerações vão rir na cara do narrador. Mas assim é que se morria no Pará de Minas de sessenta anos atrás. Eu vi e por isto eu conto. (LUIZ VIANA DAVID)    

Luiz David

One Comment

  1. Luiz David, qdo o carrinho manual foi inaugurado, um locutor da radio disse assim: faleceu fulano de tal. O féretro sairá da residênciap do falecido, no carrinho do Manuel. Eu ouvi, junto com minha mãe. Quase morremos foi de rir. E ela sempre chamou o tal de carrinho do Manoel. Otima crônica. Era assim.mesmo. tamvem posso contar pirque também vi. Abraços virtuais e afetuosos. Hila flavia

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