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VELÓRIO

Bernardo, de dez anos de idade, adotou-me como avô quando tinha cinco anos. Vizinho de porta, atoa na vida com as férias escolares, não desgruda de mim, Menos ontem, quando o chamei para ir comigo ao velório antigo craque Hermelino. Bernardo foi curto, ah vô, num vô não. Você vai se encontrar com seus amigos e vai ficar falando só sobre coisa que já passou. Vou ficar em casa assistindo o Pan na televisão.
A resposta de Bernardo caiu como um raio sobre mim. Só então percebi que nos últimos tempos tenho mesmo falado muito mais sobre acontecimentos e pesoas que ficaram para trás, até porque tenho muito mais passado do que futuro. De acordo com a estatística do IBGE eu já estou no último terço de minha existência. Se a vida fosse uma parida de futebol eu diria que daqui a pouco entrarei nos acréscimos, cuja duração vai depender do Dono do relógio, Ele mesmo, Deus. Partirei na hora que Ele quiser. Aliás, nem adianta fazer birra, quando Ele chamar irei de pronto. Contrariado partirei desta para a outra, mas fazer o que?

Bernardo ainda não sabe o significado da palavra saudosista, se soubesse já teria me chamado assim. Sou mesmo saudosista. Incorrigível. Mas quem não é? Só que os mais jovens ainda não tiveram tempo de sentir uma saudade mais esticada no tempo. Lembram-se de fatos que para mim aconteceram ontem, coisa de vinte, trinta ou quarenta anos passados. Quem nasceu em 1970 deve ter uma vaga lembrança da seleção brasileira de 1982, formada pelo Telê Santana; como eu me lembro da seleção de 1958, primeira a ganhar para nós brasileiros a Copa do Mundo. Meu neto Bernardo quando tiver os netos dele, lembrará para sempre dos sete a um da Alemanha sobre o Brasil; ainda mais que o massacre aconteceu justamente no dia de seu aniversário. O temor de Bernardo era de que os chucrutes fizessem nove gols, um para cada ano de sua existência.

Todos temos histórias para contar. Ou teremos. E é bom que todos contem sua história. O nome disto é tradição oral. É a vida das pessoas, das comunidades, do país, sendo levada adiante através do boca-a-boca.

Ontem no velório de Hermelino encontrei-me com outros contemporâneos, todos com mais de sessenta anos e com os baús cheios de suas próprias histórias. Estavam lá para se despedir do amigo, alguns dos maiores jogadores de futebol de Pará de Minas: Careca, Ocário, Geraldo Gás, Galba, Vandinho, Taquinho Carteiro, Lalau, Edson Borracha, Márcio Bechttluft, Arthur entre outros, e o maior de todos, Calé. Muitos outros amigos e companheiros de futebol do falecido craque, devem ter passado por lá antes do enterro. É uma geração que tem se encontrado cada vez mais em velórios do que em festas. É o ciclo da vida que vai se completando.
Da mesma forma que meu pai contava as proezas do Paraense E.C dos anos 1930/40 com seus craques maravilhosos, eu gosto de levar adiante o prazer que é ser contemporâneo e ter visto a geração de ouro do futebol de Pará de Minas, a melhor de todas. Quem não viu Calé jogar, não sabe o que perdeu. Mas não foi só Calé: havia ainda Tibola, Matinha, Madalena, Taquinho Carteiro, Zé Maria Peixinho, Cato, David Faria, Paulo Bernardo, Zé Pulula, Robson, Brecha, Cabinho, Guimba, Pacífico, João Mauricio, João Ribeiro, João Doge, e paro por aqui pois a lista é grande, pois a safra foi farta.

De vez em quando vou à quadra do Pompéu ver Bernardo bater uma bola. Caso ele insista em jogar futebol, deverá ser um lateral direito de utilidade, como foi Samuel Belmonte no extraordinário time do Paraminense do primeiro tricampeonato de 1977/78/79. Mas digo sempre ao Bernardo para observar os colegas dele que se destacam, pois alguns deles serão os craques desta geração que vem aí, que vai brilhar nos anos 2020. O craque, como o diamante, já nasce feito. Depois de descoberto, só precisa ser burilado.

Esta crônica eu ofereço ao Nilton Pintado, centro-avante do Paraense na década de 1950 e emérito contador de caos daqueles tempos.
(LUIZ VIANA DAVID)

Luiz David

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