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TRÁFICO DE PESSOAS – HILA FLÁVIA

trafico_de_pessoasÉ um assunto que todo mundo conhece. Basta você fazer qualquer viagem fora do país que nota, entre os passageiros, evidentes criaturas que estão saindo por motivo conhecido: tentar a vida lá fora. Se começa a conversar, como já fiz, fica ainda mais evidenciada a intenção.

Durante uma espera em aeroporto, conversei com uma mulher, de menos de quarenta anos, bem bonita, que me contou ter deixado quatro filhos com a mãe e ia para a Espanha trabalhar num restaurante como garçonete. Era de Manaus. Quando perguntei se na cidade dela não arrumaria emprego semelhante, ela me respondeu que, para ganhar o que havia sido prometido a ela, não. De outra vez foi um rapaz, que ia tentar a vida na Itália como ajudante de hotel. Era de Campo Grande. E por diversas vezes ouvi relatos parecidos, com a maior vontade de tentar abrir os olhos dos jovens. Mas as cabeças já estavam feitas, as ilusões e as intenções bem claras. Tive a nítida impressão de que ninguém estava indo enganado ou desconhecedor do que o esperava. A aparência deles denunciava. É uma coisa assim como um doente de câncer. Ele sabe e finge que não sabe. A família sabe e, como quer pensar que ele não sabe, fica enganando e desconversando sobre o assunto. Uma teia de enganações. Ninguém com câncer ignora seu estado. É evidente demais e é uma tolice essa mentirada que aprontam. Assim como o tráfico de pessoas. Acredito até que uma ou outra pessoa se iluda, mas é muito difícil.

E tem também o assunto de jogadores de futebol, que para mim não diferencia em nada do tráfico para fins outros que não o jogo. Os jogadores são negociados como mercadorias e passam por dissabores inimagináveis. O caso mais em evidência agora é do Diego Souza, que está no Oriente Médio, três meses sem receber e sem poder voltar porque o time segurou seu passaporte. É ou não um escravo? Romário passou por isso, Marcelinho Carioca também, só para citar os mais famosos. Não era hora de formar-se uma consciência entre os profissionais para se valorizar como seres humanos que são? Importa tanto o dinheiro que vale jogar por terra a dignidade? Numa de minhas saídas, eu que sou usuária de táxis, escutei um relato muito interessante do chofer. Estávamos conversando sobre futebol e ele me contou casos sobre dois primos seus. O primeiro joga num time da capital, tem 22 anos, é um jogador competente sem ser extraordinário. Parou de estudar na sexta série porque os horários de treinos e viagens se tornaram incompatíveis com o exercício profissional. E ganha quinze mil reais por mês. O que estava prestes a acontecer é que ele estava para ser dispensado por causa da compra de outro jogador para sua posição. Ficaria no banco um tempo, mas estava certo, para a família, que dentro em pouco estaria fora do interesse do clube. Foram oito anos de esperanças e treinos. Afastou-se dos familiares, mantinha um padrão de vida diferenciado, hábitos novos e caros, como restaurantes e baladas, estavam incorporados à sua vida. E então o chofer me perguntou: onde o primo arrumaria um emprego para ganhar quinze mil reais se não havia estudado e não sabia fazer coisa alguma a não ser jogar futebol? Nenhuma pessoa de sua família tinha salário acima de cinco mil reais, assim mesmo com a composição de vários membros para completar esse montante. E completou a informação contando de outro parente que havia trilhado a mesma estrada e, agora, estava completamente desestabilizado, bebendo muito e dando o maior trabalho para seus pais.

É tráfico ou não é? É venda de gente ou não é? Quem protege esses jovens com a cabeça repleta de sonhos, que se espelham em Ronaldo, Ronaldinho, Messi, Cristiano Ronaldo e outros menos votados, mas todos com salários absolutamente fora da realidade dos trabalhadores de uma nação inteira? Alguém conta para esses jovens do que terão de abrir mão para tentar chegar lá, onde esperam chegar? Alguém abre seus olhos para o estudo, o ofício, a profissão mais duradoura, o trabalho? Joga-se bem muito pouco tempo, faz-se sucesso muito pouco tempo, assim mesmo tudo sujeito a incidentes e acidentes de percurso, como uma simples perna quebrada.

O que enche a cabeça de moças hoje no Brasil e para o que elas são estimuladas? Para a curtíssima, cruel, competitiva e insana carreira de modelo de foto e passarela. Uma mocinha que desfila linda e maquiada num programa de visibilidade nacional vai se contentar com um trabalho banal? Como fica sua cabeça depois de tantos elogios e promessas de sucesso? Todas terão acesso à glória de ser Top Model? No topo cabem todas que entram nesses concursos e passam semanas e semanas se preparando para o primeiro lugar?
Não sou contra nenhum sonho e nenhum planejamento de vida. Faz parte da natureza do ser humano almejar sucesso, vida melhor, ajudar a família, etc. e tal. Mas quem vai regular esse mercado perverso, esses salários cada vez mais estratosféricos que recebem uns poucos que servem de exemplo para milhões sem nenhuma chance real?

Fico aqui pensando. É um dinheiro que não aparece com clareza. Ninguém sabe mesmo quanto recebe um jogador, o seu empresário, o técnico do clube que indica a venda, o presidente e os diretores que são aliciados e aliciadores. Ninguém venha me dizer que isso não acontece, que todo o país tem sobejos exemplos para contar. Fortunas são feitas da noite para o dia, com a maior desfaçatez. Aliás, como tem no Brasil de hoje gente que nunca trabalha e fica bilionário de repente. É um jogador vendido e uma fazenda comprada em dólar no dia seguinte, em nome do presidente do clube, o vendedor sonegando o preço e a forma de pagamento. Tudo debaixo dos panos.

Não está na hora de isso ser posto às claras para todo mundo saber? Não está passando a hora de dar uma preciosa ajuda na formação do caráter de nossos jovens se os profissionais da arte, do futebol, da moda, de qualquer setor, tivessem um ganho assemelhado aos que recebem os demais bons trabalhadores do Brasil? E esses mesmos profissionais, não está passando da hora de não serem roubados por empresários, intervenientes, técnicos e diretores dos seus clubes ou de suas agências?
Já que existe um movimento sobre tráfico de pessoas, por que não incluírem no rol todos os brasileiros que são feitos de mercadoria com prazo de validade tão curto?
É um assunto que, no dizer da gente boa do meu povoado, talha o sangue.

Luiz David

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