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O TOCO (Uma história do futebol de várzea).

O TOCO

Na animada resenha de fim de ano de antigos boleiros da cidade, a cerveja rolava solta e contribuia para aumentar a nostalgia da rapaziada saudosa dos tempos de glória em jornadas memoráveis pelos gramados e terrões da região. A certa altura dos debates, digamos assim, o assunto passou a ser o jogo dede despedida de cada um deles, aquela partida que decretou, de fato, o fim de carreira daqueles eternos boleiros. Geralmente na várzea a partida derradeira costuma ter nuances próprias do meio, fatores pitorescos, bem humorados, outras vezes tragicômicos. Com o grande zagueiro Burrão (é Burrão mesmo, assim, com U) não foi diferente e aconteceu de ele ter uma despedida surpreendente. Burrão nunca foi um zagueiro dotado de grandes recursos técnicos. Fazia o estilo do legítimo “beque de espera”, que jamais “perdia a viagem”, como se diz na “varge”: cada enxadada uma minhoca; quem é do meio sabe do que estou falando. Jogador habilidoso tinha pavor de jogar contra o vigoroso Burrão.

Naquele domingo o time da vila onde morava o becão, que já beirava os quarenta anos de idade, ia jogar numa cidade vizinha. Um forte temporal na noite anterior, porém, praticamente destruiu o gramado onde a partida amistosa seria jogada, obrigando o seu cancelamento. O time anfitrião cujos diretores ainda contabilizavam os danos na “arena” pagou a cota combinada e despachou de volta a equipe de Burrão & companhia. Mas boleiro é boleiro, se for da várzea então nem se fala! Se a turma saiu de casa para jogar bola, nem que fosse um rachão tinha de acontecer.

Na volta prá casa, um tanto quanto jururus, em cima da carroceria do caminhão, os bravos integrantes do 11 Aventureiros, da Vila Querosene, praticamente ao mesmo tempo vislumbraram um campinho de pelada na beira da estrada. Um olhou pro outro, o outro olhou pro um, os dois e os demais se olharam mutuamente, no momento em que Burrão, do alto de seus vinte e cinco anos de carreira, que lhe conferiam a liderança do grupo, sinalizou ao chofer do caminhão para que parasse ao lado da estrada e do campinho. A bola ia rolar e em dez minutos todos já estavam uniformizados. Se fosse na cidade o campo seria considerado um daqueles de futebol soçaite, comportando no máximo sete jogadores para cada lado. Como estavam ali quinze “craques”, dava para formar dois times; um deles jogaria sem camisas, para não confundir o árbitro, o mais famoso “juiz de embaixada” da várzea, Tião Carreteiro, o chofer e dono do caminhão, apaixonado por futebol.

O campinho ficava em terreno mais ou menos plano, o piso era meio grama/meio mato, aquele matinho rasteiro que todos conhecem. À guisa de metas, de cada lado do campo três bambus amarrados com cipó, com as traves bem fincadas no chão. Próximo a um dos “gols” , numa posição que seria ocupada por um hipotético quarto-zagueiro, havia um toco de árvore, com pouco mais de metro e meio de altura, por uns dois metros de diâmetro. Quem fez aquele campinho não conseguiu retirar o tronco todo inteiro, o que só seria possível com auxilio de uma máquina ; pelo jeito o tronco foi ficando e já fazia parte do cenário.

Como eram quinze os jogadores, um dos times jogaria com um a menos; então acertou-se que o esquadrão que ficasse com sete elementos, defenderia a meta mais próxima do toco. Tirado o par ou impar os times foram sendo formados, até que restaram apenas o zagueiro Burrão e o Toco. Um dos “capitães” então se dirigiu ao outro e fez a pergunta fatal: -e agora, quem você escolhe, o toco ou o Burrão? A resposta veio na bucha: – eu fico com o toco.

E foi asim que, preterido por um toco de árvore, o célebre “stopper” Burrão, cujo currículo incluía mais de dez pernas de adversários quebradas, decidiu encerrar depois daquela história partida, sua gloriosa e duradoura carreira de jogador da várzea.
O resultado dojogo? A súmula da partida desapareceu, mas quem estava lá, garante qus acréscimos do segundo tempo, Burrão cometeu pênalte, que convertido, deu ao time do toco a vitória pelo placar de 3 a 2.
Já o toco jogou tranquilo, paradão, segurou o ataque adversário, dominou muitas bolas no peito e não cometeu nenhuma falta. Acabou ganhando o prêmio de melhor jogador em campo, oferecido por uns galhofeiros que assistiram a partida.

(Esta crônica foi publicada em maio de 2014 e dedicada ao peladeiro e cronista bissexto, Lúcio César de Faria)

Luiz David

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