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PASTEL COM PIMENTA

PASTEL COM PIMENTA

Não existe época melhor para uma criança do que a de férias escolares. As minhas primeiras, em 1955, nunca mais as esqueci. Eu cursava o primeiro ano no Grupo Escolar Geraldo Jardim Linhares, na Vila Magnesita em Belo Horizonte, bem na divisa com Contagem.Quando dezembro daquele ano chegou, logo no começo do mês, minha levou-me até a estação da Gameleira para que eu embarcasse no trem rumo a Pará de Minas. O irmão de minha mãe, Tio Emidinho, era o maquinista da locomotiva e seria o responsável por mim durante a viagem. Na estação, ele desceu da máquina foi até onde nós estávamos na plataforma, ouviu com atenção as recomendações de minha mãe, e os recados para parentes. Em seguida, sem perder tempo, acomodou-me num dos carros de passageiros, que não estava cheio, de modo que fiquei com uma janela bem grande só para mim, o que permitia que eu apreciasse toda a paisagem. Voltou à maria-fumaça, deu um apito e a jornada teve início. Da janela mal tive tempo de dar adeusinho a minha mãe, que balançava as mãos bem feliz, talvez por saber que ficaria livre de mim por um mês, considerando que eu não era exatamente um anjinho aos oito anos de idade. Eu estava fazendo meu primeiro vôo solo, ou seja, minha primeira viagem desacompanhado, e me sentia um rei naquela cadeira dura cujo desconforto só percebi depois de umas duas horas de viagem, quando o trem se aproximava de Betim e já estava escuro. Se tudo corresse bem, chegaríamos ao Pará às dez da noite. Eu prestava atenção em tudo e em todos. Em determinado momento um senhor de paletó, gravata e quepe, com uma estranha ferramenta na mão, passava pela poltronas e pedia o bilhete ao passageiro. Achei estranho, que coisa de bilhete é essa? Se as pessoas estão indo, não precisam mandar bilhetes e aquele senhor não era um carteiro. Quando chegou a minha vez, o chefe do trem perguntou: – Ah! você é o sobrinho do Emidinho não é? Filho do Negrito? Eu fiz que sim com a cabeça, de olho no tal alicate. O chefe então me disse que eu não precisava de bilhete e deu um beliscão na minha bochecha, só faltando falar bilú bilú tetéia. Nunca mais me esqueci daquele senhor. Mais tarde, tornei-me até amigo dele: se tratava de João Lopes Flores, uma figura muito amável, que em 1966 foi um dos fundadores do velho e bom MDB em Pará de Minas. Foi através do sô João que eu me filiei ao partido em 1974. Algumas vezes fui à casa dele, na rua Gonçalves Ferreira, para conversarmos sobre política.

Durante a viagem, de vez em quando o chefe passava pelos vagões anunciando a próxima parada, cujos nomes eu gravei na memória depois das viagens que fiz nos anos seguintes: PTO; Bernardo Monteiro, PTB, Betim, Vianópolis, Juatuba, Mateus Leme, Azurita, Zicuta, Matinha, Gomes e finalmente Pará de Minas, que ele nem precisava avisar, pois já se avistavam as luzes da cidade. Mas o chefe cumpria com a sua obrigação e anunciava sem disfarçar a alegria: Pará de Minas, Pará de Minas, Pará de Minas… E aquele ar de missão cumprida estampado no rosto, onde se destacava o bigode ainda preto. Senhor João Lopes Flores, que grande figura!

Duas estações chamaram sempre a minha atenção: PTO e PTB, assim, três letras apenas. Só muitos anos depois eu fiquei sabendo o significado das siglas, através do próprio Sô João Flores: significavam simplesmente “Posto Telegráfico “O” e Posto Telegráfico “B”. Não me perguntem pelo restante do alfabeto que eu não sei, talvez estivesse espalhado pelas centenas de quilômetros da RMV -Rede Mineira de Viação, que de maldade nós meninos chamávamos de “RUIM MAS VAI”. Zicuta, Matinha e Gomes não passavam de pontos de embarque/desembarque, mesmo assim o trem só parava neles,se houvesse passageiro, embora na Matinha existisse mesmo uma boa plataforma, bem em frente a casa do célebre Enoque, um médium bastante respeitado, famoso por todo o Brasil, que deixou vasta descendência, registrando-se entre seus netos, o grande futebolista Matinha (alguém precisa escrever sobre Enoque).
Sobre as pequenas estações, PTO que atendia a população de Contagem, atualmente é o ponto final do metrô de Belo Horizonte e PTB não é mais uma parada, mas se transformou, talvez, no maior bairro de Betim. O tem de passageiros deixou de circular em 1978, por aí.

Mas a grande expectativa da viagem era Azurita, distante vinte e seis quilômetros de Pará de Minas, onde se dava a famosa baldeação; quando os passageiros com destino a Pará de Minas, ou originários de lá, trocavam de trem. A estação era enorme, aos olhos de uma criança de oito anos, no meio dela um bar, com dois balcões entre os trilhos que demandavam ao Triângulo Mineiro e a Pará de Minas. Em Azurita, meu tio maquinista veio me buscar no vagão e levou-me para um lanche no bar, onde nas estufas sobre o balcão despontavam enormes e maravilhosos pastéis. Perguntei ao tio Emídio se eu podia comer um daqueles petiscos, ele disse que sim, e acrescentou: pede um guaraná também. Eu apenas pensei que maravilha de viagem estava sendo aquela. Fiz o pedido e a balconista ao saber que eu era sobrinho do maquinista, repetiu o gesto do sô João Flores, beliscando minha bochecha. Foi quando se deu a tragédia…

Primeiro eu tomei um bom gole do guaraná, bem gelado, direto da garrafa e só então dei uma enorme mordida no maravilhoso pastel. Só pode ter sido maldade, todas as portas do inferno pareceram ter sido abertas com a minha mordida. Nunca mais experimentei nada tão apimentado, e com pimenta vermelha, colhidas talvez em algum canteiro pelo próprio capeta. Sei que quase desmaiei, nem o litro de água que trouxeram para eu beber e lavar a boca, resolveu. Minha boca chegou a ficar ferida por alguns dias. Depois me contaram que aqueles pastéis apimentados eram a maior atração da casa, que centenas deles eram vendidos todos os dias. Pelo sim, pelo não, no futuro nunca mais comi nada no bar da estação de Azurita. E pastéis, durante décadas só comi de queijo. Apenas há poucos anos voltei a comê-los de carne, embora viesse depois a apreciar uma boa pimenta, não daquelas de Azurita.
Pouco depois meu tio reassumiu o comando da maria-fumaça que o aguardava e partimos rumo ao Pará. Curva da ferradura, Zicuta, Matinha, Gomes, Patronato, Azambeque, e finalmente a estação do Pará, onde pequena multidão esperava pelo trem e seus passageiros.
Na gare, o grande relógio pendurado no teto marcava 10:10. Minha vontade era gritar: Pará de Minas cheguei! Mas a boca estava dolorida demais.

O espaço acabou e nem mencionei as férias, assim, voltarei ao tema na próxima semana.
#Fui!

Luiz David

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