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CARRO DE BOIS – (A. Pinto)

Uma das lembranças marcantes da minha infância é o carro de bois. Algumas poucas vezes servi de candeeiro; muitas outras, encarapitado sobre ele, acompanhava os trabalhos dos peões da fazenda, admirando a maestria e o entusiasmo, quase orgulho mesmo, com que aqueles trabalhadores desempenhavam tarefa tão pesada, cansativa e perigosa e, ao mesmo tempo delicada, a exigir muita perícia e reflexo rápido.

Lembra-me bem, entre tantos os que conheci, o carreiro Antônio Ferreira, homem de meia idade, magrelo, alto, rosto descarnado e anguloso, sempre de camisa xadrezada, que por muitos anos trabalhou com meu pai, com quem também crescera junto lá na roça. Era homem de inteira confiança e gostava do seu ofício que conhecia bem. Valia a pena ver a sua disposição na lida com o carro e com os bois, cultivando verdadeira amizade que se mostrava mútua, tamanha a compreensão entre as duas partes. Parecia até que conversavam entre si… De normal, ele falava baixo, quase murmurando. Noutros momentos, conforme exigissem as circunstâncias, fazia gosto ver: tirava da boca o pito de palha, escancarava a goela donde saía o grito de comando que ecoava grota a dentro… Nessas horas, os cornudos carreirões entesavam o pescoço, baixando quase até o chão as cabeçorras, como que num ensaiado ritual de obediência, fincavam com mais força na terra suas patas e atendiam fielmente a ordem recebida. Aí, então, o carreiro Tõe Ferreira, modificando o tom da voz, soltava ao vento um novo brado, agora brando e carregado de ternura e de agradecimento, que comandante e comandados bem sabiam compreender.

Saída a cava da estrada, baixada afora a viagem era tranquila. Já os bois caminhavam lentos, sossegados e remoendo, indiferentes ao peso que arrastavam, enquanto o carreiro voltava a chupar o seu palheiro, ou aproveitava a calmaria para liberar com voz chorosa uma toada qualquer das muitas que moravam no seu peito.

Outras vezes ainda, era a hora da canícula que dominava a tarde. O sol queimava e até os passarinhos se calavam. Parecia que sumiam. O ar parado dava peso ao silêncio só cortado pelo cantar do carro. O velho cachorro da fazenda, um grande fila amarelo, companheiro inseparável do carreiro, orientado pelo instinto de defesa, caminhava sob o carro protegido pela sua sombra, colocando-se entre as rodas, logo atrás do eixo. Acompanhava paciente os passos da boiada à sua frente, deixando escorrer da língua exposta a baba cristalina de suor.

Eu, menino, aboletado sobre a mesa, bem ali na tábua do recavém, as pernas penduradas para fora, via fugir, vagarosamente, a estrada percorrida; minha visão ofuscada pelo sol e pela poeira fina que subia, como estas lembranças que desenrolo hoje da memória, embaciadas também de uma saudade danada.

Luiz David

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